sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Última aula do 1º módudo da Escola Paroquial da Fé - 2014










"Sou Católico, vivo a minha fé

Material utilizado nas nossas aulas da Escola Paroquial da Fé:
Adquira um livrinho desses e tire muitas de suas dúvidas acerca da nossa fé católica. Vale a pena!
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terça-feira, 7 de outubro de 2014

ÊXODO: ACONTECIMENTO E PALAVRA

Podemos considerar a experiência do Egito como uma constante tensão (Deus se esqueceu do povo?) e, ao mesmo tempo, uma distensão (YHWH se lembra da promessa). Muitos estudiosos da Bíblia ou teólogos já se adentraram numa exploração do Êxodo, relacionando-o com o novo caminho de "libertação" da América Latina. É um evento querigmático, provocador, criativo, inexaurível, tomado justamente para uma leitura verdadeira da teologia da libertação.
O Êxodo é o acontecimento-chave, que modela a fé de Israel. Em todas as religiões, a cosmogonia exerce uma fascinação dramática. É forte o prestígio das origens, contudo, para além dos fenômenos do mundo físico, a cosmovisão hebraica constrói um outro epicentro: o acontecimento salvífico do Êxodo. O Êxodo, como fato histórico e salvífico, é tão original que atrai para si a experiência da criação. Por conseguinte, ele se converte em uma "reserva de sentido" inesgotável.
Uma chave hermenêutica importante: toda experiência humana gera sua "palavra". Sabemos que um acontecimento não é visto como decisivo na história de uma pessoa ou de um povo no momento em que acontece, mas depois de certo tempo, logo após ter "doado" sua energia recriadora. Isso fica claro em nossa experiências pessoais que estão cheias dessas manifestações-de-sentido.
O Êxodo sempre significou para eles a "origem" ontológica de sua realidade presente, ou se convertia em "memória" interpelante, quando deixavam de ser livres. O sentido latente do primeiro êxodo foi acontecendo como prolongamento linear daquela libertação e passou a se expressar em uma "palavra". Não se trata de um fato isolado que aconteceu por volta do século XIII a.C., mas de um fato refletido, aprofundado, explorado pela fé e captado em todas as suas projeções até a fixação do relato atual. Por isso podemos considerar como sendo uma mensagem profunda, pois contém a significação de uma experiência: Sofrimento do povo e ação amorosa de Deus.
Quando um acontecimento é contemplado do ponto de vista da fé e se reconhece nele a manifestação de Deus, a palavra-relato que lhe "dá novo significado" é interpretada como Palavra de Deus. É sempre memória e é sempre anúncio. O passado se torna "promessa" para o ouvinte dessa Palavra.
O acontecimento salvífico, uma vez aprofundado, é visto como desígnio, ou seja, como tendo sido preparado antes de se realizar. Numa cosmovisão mítica, pode ser explicado antecedentemente como destino. Por exemplo, quanto mais significativo o êxodo, tanto mais aparece como disposto nos planos de Deus. É muito usada a linguagem da vocação: uma forma de narrar o sentido mais profundo de um acontecimento a partir do mesmo. Portanto, o êxodo é o acontecimento programático da experiência religiosa de Israel e que pode inspirar a vivência de fé de muitas outras pessoas que nele se aprofundarem. Além do mais, inspira correntes teológicas, como por exemplo, a Teologia da Libertação na América Latina, que visam a promoção da vida humana, lutando contra qualquer forma de escravidão e de exploração.
Esse é o exemplo de um acontecimento como outros fatos históricos que são vividos por minúsculos grupos humanos, cientificamente determinados, mas que dão origem à descoberta, por trás deles, de uma presença de Deus agindo amorosamente em vista de sua libertação.
Toda exploração vem acompanhada de uma prepotência ignominiosa. A alienação dos hebreus chega a tal ponto que eles se tornam incapazes de esperar a salvação. Não se trata de uma infidelidade à graça, mas de uma alienação total do homem, que anula a própria esperança, última possibilidade de libertação. Muitas pessoas não são capazes de reconhecer suas próprias capacidades e se tornam alheias à sua realidade, com isso tantas “abominações” acontecem, “pessoas erradas” assumem o poder, porque aqueles que deveriam assumir determinada função não a fazem.  É possível que esta frase seja vista por alto, mas nela está imersa toda uma violência aniquiladora, quando a redescobrimos em tantos casos concretos: o oprimido se "integra" de tal maneira com o opressor e em sua própria situação de oprimido, que não imagina outra possibilidade que o "liberte".
O alienado não somente não tem consciência do que pode "ser" ou fazer, mas aceita a idéia de que as coisas não podem ser de outra maneira. O êxodo engendrará a consciência de liberdade do povo de Israel. Este relato é interpretação do acontecimento. É para dramatizar a presença do Deus libertador. Os hebreus, com efeito, eram numerosos e isso constituía um perigo político para a segurança interna do reino. Por isso, encarregaram as parteiras de matarem os filhos varões. Este panorama conota a opressão social e a condição a qual os hebreus eram mantidos.
Podemos considerar a libertação dos israelitas do Egito como um acontecimento de âmbito político e social. Deus não começou salvando em nível espiritual, nem sequer de pecado. Salva o homem total, cuja realização humana pode ser impedida não só por ele mesmo, mas também pelos outros homens que abusam do poder ou de seu "status" social.
Os mitos mesopotâmicos antecederam os relatos bíblicos, mas, se por um lado a situação do mito mesopotâmico parece mais autêntica: o homem se rebela e luta, ao passo que o "clamor" dos filhos de Israel parece mais passivo, clamam a Deus em vez de agir; por outro lado, a cosmovisão mesopotâmica não aponta nenhuma saída libertadora como acontece com a libertação do povo de Israel. Muitos teólogos afirmam que foi o acontecimento, em suas próprias entranhas, que foi manifestando uma presença divina com todas as suas implicações, inclusive a Aliança.
O clamor indica que o povo começa a conscientizar-se e, portanto, começa a trilhar o caminho da libertação. Quando clama e eleva seu grito de protesto e denúncia. Nos relatos vocacionais de Êxodo 3 e 6, YHWH é apresentado como sabedor da opressão do povo. Como é próprio do seu modo de agir, escolhe um intermediário como líder, neste caso Moisés. Ele, apesar do medo, responde positivamente, porém, uma recusa ao chamado significaria, como ainda significa, uma perda do próprio "ser".
A palavra de Deus é conscientizadora, tem caráter salvífico e vocacional. Moisés tinha medo devido à grandeza de sua missão. O seu diálogo com YHWH tem a intenção de abrandar o coração do povo, o desafio é aquele que oprime. Notamos que o opressor nunca liberta nem se liberta, pelo contrário, quando surge um movimento de libertação que o atinge, então ele oprime com mais violência. Todo este conflito é significativo, pois prepara o grande momento da libertação como uma ato de força de Deus. Na narrativa do êxodo, a força de Deus foi superior à do faraó. No entanto, hoje, existe uma consciência muito clara de que, além da graça de Deus, não há uma força superior à do povo unido e comprometido.
O ritual da Páscoa é o memorial do acontecimento salvador. Forma um círculo hermenêutico: do acontecimento arquetípico ao presente existencial (êxodo - libertação do povo - Páscoa de Cristo - continuidade - processo atual de libertação). A partir da saída do Egito, o opressor deixa de sê-lo, pois perde seus escravos, mas mesmo diante daquele processo libertador o povo ainda se permitiu uma última dúvida (Ex 14, 11ss). Trata-se de um episódio paradoxal, só o próprio acontecimento revela todo o seu "sentido".
Podemos perceber na narrativa do canto triunfal uma forma de expressão do sentido. A saída do Egito e a entrada na terra prometida são correlatos, um aprofunda o sentido do outro num constante processo dialético e marcadamente significativo.
A narração conta mais do que aconteceu exteriormente no ato da libertação. É interpretação, que nunca deforma o acontecimento, mas o enriquece com uma visão mais profunda. A história bíblica é manifestadora de um sentido, mais que reprodução de fatos contingentes. Uma história sagrada não pode coincidir com uma crônica comum, ela manifesta o desígnio e a significação da história conhecida pelos homens.
O êxodo foi "a" experiência de salvação, entendida pelo povo em termos de libertação. Compreende-se a Deus como salvador, porque Ele atua na história dos homens e, por isso, também,  libertação não é simplesmente um conceito adventício, mas o centro do querigma bíblico. Percebemos, ainda, que na história da salvação, Deus se serve de mediadores humanos. Portanto, Deus se revela tanto através do acontecimento, como através de uma pessoa. Era mais fácil para os hebreus crer em YHWH diretamente, do que em Moisés, ser humano como eles, mas esse mesmo Deus se expressava através de Moisés, o qual tinha que assumir essa forma histórica e pessoal da vocação para a liberdade.
A fé bíblica, que não é intelectual, mas dinâmica e existencial, se expressa em várias dimensões: fé-reconhecimento de Deus, fé-compromisso à Palavra, fé-força no testemunho, fé-abertura ao dom de Deus e fé-aceitação do enviado. Nossa história teve e tem, sem dúvida, novos Moisés que dizem sua palavra de conscientização libertadora. Fica uma questão para pensarmos: tem alguém disposto a ouvir?
A consciência de liberdade de Israel, depois de refletida e amadurecida, se eleva à categoria de mensagem para todo homem. Contudo, se a liberdade é um dos valores intrínsecos do homem, por que, principalmente, na América Latina, a Igreja, às vezes, se faz tão alienada a ponto de não ver os sinais dos tempos, que mostram claramente o caminho da libertação? Quantas vezes insistimos em estruturas e discursos que não conseguem responder à problemática do contexto ao qual estamos inseridos?
A prática do amor, num contexto de opressão, exige luta. Todo caminho de libertação se realiza quando se suprime o poder opressor e se instaura outro poder, o salvífico. A justiça é um bem radical, que reclama do amor uma “atitude violenta”, ou seja, deixar o comodismo de lado e ousar fazer diferente diante do novo que se apresenta. A liberdade é um dom tão íntimo e exigente que, quando está obscurecida ou perdida, procura a libertação a qualquer custo. O Deus da paz é antes o da justiça e da liberdade. A paz é pecado quando serve para manter a injustiça.

Referência bibliográfica
CROATTO, J. Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo: Paulinas, 1981.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Abraão: a vida, uma aventura sem limites

José Alegre Aragüés
Vamos discorrer sobre um personagem que gostaria desde logo de anunciar como apaixonante. Se já o título traz esse sentido de entender a vida como uma aventura sempre aberta, é porque o protagonista possui todas as características de um ser humano aberto, dramático e, acima de tudo, portador de esperança. Seu ciclo integra-se na fase que denominamos a história dos patriarcas. Até o capítulo 12 do Gênesis, a Bíblia esteve nos falando de uma história comum a toda a humanidade; é a história do mal, a história de nossa própria realidade, a história de nossa condição, que afeta todo ser humano. A partir de Gn 12 até o final do livro, seu intento é desenvolver outra história, diferente.
Se até então contou-nos a história do mundo, não foi porque quis contar-nos os fatos que deram origem ao mundo físico, mas para responder à pergunta sobre o que é o ser humano e quais as causas que o condicionam para que seja como é e se encontre sujeito a uma realidade tão problemática como a que vemos em nós mesmos e ao nosso redor. Para alguns, essas narrativas têm, pois, uma interpretação simbólica, pretendendo responder à seguinte questão: o que é o ser humano? Para outros, manifestam uma preocupação etiológica, ou seja, averiguar a causa: por que somos e agimos assim. O problema do mal e a relação do ser humano com o mal. Porque existe o mal, eis a eterna pergunta a que incessantemente a realidade nos remete, e que está presente nestes 12 primeiros capítulos do Gênesis com a mesma intensidade com que nos é apresentada ao longo de toda a nossa vida, motivando tanta literatura, discussão e ressentimento.
A partir, pois, dessa história do mundo, começa a história do povo. A seguir, a narração bíblica vai centrar-se na história própria de uma comunidade e Deus continuará a ser o dono e o criador da história em sua totalidade, ainda que isso permaneça um tanto oculto, embora não menos real. Esta história, que vai do capítulo 12 ao 50, com que termina o Gênesis, é um pequeno mundo. Em sua forma atual, ela nos é apresentada como a história de uma família ao longo de três gerações, na qual palpita a época nômade e seminômade das tribos de Israel. Apresenta-se, pois, como um prefácio a toda a história nacional. O autor demonstra grande delicadeza e domínio para tecer os diversos relatos. Tem fluência, mantém continuidade ao descrever a emigração de Abraão, a sorte de seu filho e de seu neto até concluir no grande funeral que transporta o cadáver de Jacó para a Palestina, após contemplar como seu filho José foi elevado ao poder e à máxima autoridade no Egito. Assim, esses relatos existiram antes de forma independente, e só mais tarde foram inseridos nesta grande história, motivo pelo qual eram contados como histórias individuais que se transmitiam de geração em geração.
Com o correr do tempo e de acordo com os lugares, muitos detalhes dessas histórias mudaram, outros foram esquecidos, a outros acrescentaram-se algumas coisas, um mesmo fato foi atribuído a per onagens diversos, encontrando-se repetido. No final, entretanto, todos correspondem a essa história, unificada pelo últimos redatores no séc. V a.C. As narrativas de Abraão procedem de três fontes: a javista, a eloísta e a sacerdotal.

1. Cronologia: história ou mito?
Situar Abraão cronologicamente: descobrir e reconhecer os dados históricos é uma tarefa muito difícil. Todavia, pelos dados que temos à nossa disposição, hoje sabemos que pode ser situado nos séculos XX ou XIX a.C. Ademais, a propósito desses dados, houve três tipos de interpretação que, apesar de tudo, coexistem: interpretação historicista, crítica radical e histórico-crítica. Entretanto, a primeira aceita como histórica toda a narração, assumindo até as contradições cronológicas. Hoje, todavia, muitas pessoas estão empenhadas não só em entender literalmente a Bíblia, mas também em aduzir argumentação cronológica em tudo. A segunda, que se manifestou principalmente em inícios de nosso século, opõe-se a toda a historicidade, tencionando ver apenas uma composição literária, uma ficção que se põe a serviço de uma teologia da história, vale dizer, seriam reunidas algumas tradições legendárias para dar-nos um sentido da história e da vida humana. A terceira, que predomina hoje entre os estudiosos da Bíblia, é aquela que, servindo-se das descobertas arqueológicas dos últimos tempos, reconhece um fundo histórico em grau muito mais intenso do que se havia pensado até agora, com base no qual se elaborou uma reflexão teológica que pretende transmitir uma visão em torno do ser humano com suas angústias, sua solidão, sua esperança e sua função na experiência religiosa.
Por essa razão, ao falar do ciclo de Abraão, é preciso que se faça uma pergunta: estamos diante de uma realidade histórica ou pré-histórica? Supondo-se que se entenda por história as etapas e culturas da humanidade cuja documentação literária ou arqueológica possuímos, a época de Abraão dispõe hoje de dados literários e arqueológicos abundantes. Precisamente as descobertas arqueológicas permitem ampliar incessantemente os limites do que denominamos história e, desse modo, Abraão estaria situado próximo à linha de separação entre história e pré-história inserido, porém, na primeira. De fato, os nomes de pessoas, lugares e cidades que aparecem são encontrados também nas tabuletas de argila que têm aparecido nos sítios arqueológicos de Mari, Ebla etc. e que em número superior às 20 mil redigidas em várias línguas de tronco comum semita testificam-nos os nomes de Abraão, de Sara e também costumes que refletem com muita semelhança o modo como o faz o Gênesis.
Assim, se entendemos por história tudo o que acontece a partir de um momento fundamental que confere unidade e coerência aos avatares (espírito) de um grupo humano, nesse caso Abraão faz parte da pré-história de seu povo, uma vez que se entende esse povo constituído como tal no evento do Êxodo e Abraão é, efetivamente, anterior ao século XIII. Abraão é então uma figura mítica ou real? A questão não é tão radicalmente clara, pois observamos continuamente que figuras de nossa história são continuamente transformadas pela literatura em meios para expressar uma mensagem ou uma concepção sobre a vida ou alguma realidade humana. Existem personagens que fazem parte do mito ao mesmo tempo em que, sem haver existido, são ficção para falar-nos de nossa própria realidade. Dom Quixote não existiu e, não obstante, em todos nós ocorre a realidade idealista que reflete o Quixote, em oposição à materialista encarnada em seu escudeiro. Igualmente, temos conhecimento de pessoas que existiram e construímos sobre elas toda uma ficção literária, utilizando-as para transmitir um sentido do que entendemos sobre a vida. O fato de ser a novela histórica um fenômeno tão atual entre nós conserva exatamente esta que foi uma constante no decurso da história literária da humanidade: servir-se de personagens significativas para
enfatizar muito mais o significado da veracidade histórica. É o mesmo que ocorre no cinema e na pintura. O pintor tenciona transmitir não tanto o que seus olhos físicos veem, mas os traços da personalidade de um personagem e as características do que constituía a preocupação do viver em sua época.
Seja como for, o ciclo de Abraão forma um complexo literário que separa a história da humanidade da história de um povo, razão pela qual o colocaríamos na pré-história. Sua vida adquire sentido à medida que, vivendo os dramas e as alegrias de todo povo e de todo ser humano, é portador de esperança para toda a história da humanidade. O que temos, pois, diante de nós? Talvez uma leitura exemplar e idealizada de um antepassado. É possível que a história de Abraão a nós transmitida, tal como fazemos nós e todos os povos, não seja mais que uma projeção idealizada sobre um personagem do qual, por ser nosso, antepassado, queremos salientar uma série de qualidades. Pode ser também a síntese da própria história do povo. Um povo ao qual também coube deslocar-se para preservar sua fé, sua identidade; e para ser portador de algumas promessas na história da humanidade. A história de Abraão pode ser também a expressão da história pessoal de todo ser humano, que nos cabe carregar com a inquietante tarefa de encontrar nosso "lugar", que nos toca suportar com a missão de buscar nosso próprio futuro, no decurso da qual devemos superar muitos obstáculos, muitas dificuldades, muitos desânimos, esperando ou perdendo a esperança da realização plena de nossas aspirações mais profundas. Tudo isso é o que temos diante de nós.

2. A pessoa
Afinal, quem era Abraão? A pergunta concreta leva-nos ao encontro com a pessoa. É-nos informado que era filho de Térah, originário de Ur dos caldeus, de onde tem de sair para dirigir-se a Harrã, em direção a Canaã, com toda a sua família. Terá de voltar a deixar Harrã para aproximar-se mais de Canaã. Uma coisa está clara: ao falar-nos de Abraão, a Bíblia começa com o fato de uma saída e com o fato de uma experiência religiosa: "O Senhor disse a Abraão: 'Parte da tua terra, da tua família e da casa de teus pais..."' (Gn 12,1). Eis aqui uma constante em sua vida: sair, caminhar. Em poucos versículos, nossa mente fica repleta de referências de lugares para onde deve dirigir-se: Ur, Harrã, Canaã, Moré, Betel, Négueb, Egito, retornando a quase todos eles e percorrendo-os à larga e em toda a amplitude. A impressão que causa de modo imediato é a de que nos encontramos diante de alguém cuja vida é caminhar.
Muito embora seu caminhar esteja sempre unido à experiência religiosa toda especial como a de manter uma relação pessoal com um Deus único que o tira constantemente das casas de seu xadrez. Sente nostalgia de uma terra que lhe foi prometida, e em todas quantas percorre encontra-se sempre como estrangeiro. Dramática, e ao mesmo tempo irônica, é a narração da morte de sua esposa, a quem quer dar sepultura em um pedaço de sua propriedade e tem de pedir o favor aos proprietários hetitas para que lhe permitam adquirir o direito de propriedade sobre um túmulo. Esse Deus que o faz caminhar e lhe promete uma terra promete-lhe também um filho. Entretanto, não chegam a ele nem terra nem filho. E tem de continuar sempre esperando. É-lhe anunciado um filho, envelhece e não o tem. Finalmente chega um, mas não é o herdeiro e tem de continuar esperando.

3. A questão do monoteísmo
Essa conexão de experiência religiosa com um único Deus em meio a culturas politeístas fez surgir uma questão: com Abraão, a história religiosa da humanidade experimenta um salto qualitativo em um duplo movimento. A questão do monoteísmo: como chega Abraão ao monoteísmo em meio a culturas politeístas? Sabemos que o politeísmo era uma forma acomodatícia, um sentido que justificava formas de vida e de poder. Ele, no entanto, passa para um monoteísmo transcendente, porém ao mesmo tempo histórico, no qual reconhece a Deus como o único Senhor do mundo e da história.
Continuará a conviver com as formas religiosas politeístas cujas práticas ele aceitará nos demais e diante de quem, às vezes, terá de esconder sua própria concepção. Existe um texto muito antigo, o Apocalipse de Abraão, texto apócrifo de origem judaica que, todavia, em sua versão atual revela alguma influência cristã e também gnóstica, que nos dá uma chave para a compreensão do problema. Térah, pai de Abraão, é construtor de imagens, escultor, e dedica-se a esculpir imagens de deuses, estatuetas que logo vende para satisfação da religiosidade popular. Abraão ajuda-o na comercialização e em suas andanças comerciais percebe que essas estatuetas lhe caem e quebram-se ou o fogo noturno do lume toma-as e as consome.
Devido a essas experiências, cai em profunda crise religiosa: "Estas imagens produzidas por meu pai não podem ser realmente deuses se os elementos as destroem com tanta facilidade". Que valor têm, pois, esses deuses? Como podem ser deuses? A crise em que se vê imerso é enfrentada em seu ambiente e,
em virtude do caráter nacionalista daquela religiosidade, vê-se obrigado a sair, fugindo de seu próprio mundo. A partir dessa perspectiva, encontrar-nos-íamos com um Abraão surpreendente, um homem inquieto, profunda e sinceramente religioso, que busca a Deus e se esforça por purificar sua fé. Esse homem que busca a Deus encontra-se com um Deus que o chama. Deus sai ao encontro do homem que o busca. Partindo desse esquema bíblico, revelação de Deus e vocação humana estão profundamente ligados, são interdependentes.
Chamado e resposta formam um conjunto inseparável e intercambiável, porque quem chama a Deus encontra-se com sua resposta, e Deus, por sua vez, chama também a partir das inquietações e aspirações mais profundas do ser humano.

4. A vida como caminho
A partir desse encontro com Deus, a vida de Abraão, assim como a de todos nós, passa a ser aventura sem limites, um caminhar incessante para a maturidade, para a plenitude, em uma sucessão ininterrupta de etapas que conduzem a metas mais altas ou profundas, em cujo fundo, porém, sempre presente e por vezes oculto, aparece um Deus que acompanha constantemente o homem e que é a força fundamental de sua esperança e de seu caminhar. Foi acaso sua evolução religiosa para o monoteísmo a faísca que provocou a ruptura com o politeísmo ambiental e que o obrigou a abandonar seu ambiente a fim de evitar a hostilidade de seus compatriotas, uma vez que foi a maneira de construir e manter sua identidade humana e religiosa? Abraão necessitava desde logo um novo lugar onde expressar sua identidade e onde pudesse viver com fidelidade suas próprias convicções, mas também Deus necessitava de um agente que constituísse um novo elo no processo de dar-se a conhecer de maneira pausada porém progressiva e pedagogicamente à humanidade.
Outra experiência crucial na história religiosa da humanidade é constituída pela questão dos sacrifícios humanos (Gn 22), sempre presente até épocas bastante recentes (sabemos que as culturas pré-colombianas mantinham esse costume). Não é preciso ir muito longe, já que algumas formas religiosas de fanatismo exigem atualmente sacrifícios humanos. E os meios de comunicação encarregam-se de fazer chegar a nós imagens dramáticas de ritos desse tipo. De qualquer maneira, era um costume muito difundido nas culturas antigas, atestado também entre os cananeus. A Bíblia nos apresenta o sacrifício de Isaac como uma prova. Em uma narração magistral, o autor previne os leitores: "Ora, depois destes acontecimentos, Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: 'Abraão'; ele respondeu: 'Eis-me aqui'. Ele prosseguiu: 'Toma o teu filho, o teu único, Isaac, que amas. Parte para a terra de Moriá e lá o oferecerás em holocausto sobre uma das montanhas que eu te indicar"'.
É o filho, a esperança, o futuro. Nesse sentido, a Bíblia nos acautela. Não se trata de repetir um sacrifício. Não se trata de que este Deus exija sacrifícios humanos. Efetivamente, porém, reporta-se a tradições antigas nas quais aconteciam tais sacrifícios e nas quais, em dado momento, uma nova experiência religiosa entendeu que era necessário erradicar esse costume. Alguns pretenderam estabelecer um paralelismo entre Isaac e Jesus. Eu diria melhor referindo-me a ambos como dois momentos muito importantes no processo de dar-se a conhecer Deus à humanidade. Em Isaac, supera-se o sacrifício humano, substituindo-o pela vítima animal. No NT, não é um sacrifício de animais. É a oferta livre e consciente que alguém pode fazer de sua própria vida pelos outros. São o trabalho e o esforço cotidiano por fazer uma terra nova e por testemunhar o Deus de Jesus, um Deus extraordinariamente humano.

5. A mensagem de esperança
Depois disso, entramos na questão da mensagem. Sobre um fundo histórico ou com base em algumas narrativas que têm um fundo histórico, embora não saibamos até que ponto o sejam, esconde-se, como em toda a Bíblia um processo de reflexão elaborado ao longo de muito tempo. Trata-se de processos que constituem sempre meios para transmitir-nos a visão e a concepção sobre a vida, a nós que, no entanto, estamos inseridos nela e, passando por ela em etapas sucessivas, indagamo-nos constantemente: o que é a vida, ou o que é a história? Qual o sentido de todo esse acontecer que vivemos? Onde encontrar um sentido para a vida e como pô-lo em prática? Há lugar para a esperança? Centraliza-se exatamente aqui a mensagem de Abraão.
Abraão é o personagem da promessa. Guarda como fundamento de sua vida o fato de ser portador de uma promessa para a humanidade e, nesse sentido, é o personagem da esperança. Esperança que se manifesta em um duplo aspecto: um filho que é o futuro, e uma terra na qual realizar essa grande promessa, onde viver. Duvida e encontra-se continuamente em meio a sua vida na nudez da solidão, longe de sua terra, de sua cultura e de sua família. Além disso, tem de renovar sua própria imagem de Deus, o sentido da promessa que espera. Sempre em um processo de renovação contínua, mas sempre em um processo de espera. Sua espera não é a que brota do desespero, mas a espera paciente e vagarosa. Esperar, segundo ele, é como amar ou criar, é como semear. Sempre como quem, em meio a tudo, encontra uma rocha na qual se apoiar. E essa rocha é sempre a convicção da companhia de Deus.
É espera da esperança, contraditória em relação à desesperança. E também a espera da fé, oposta ao sentido da incredulidade, da desconfiança, do cinismo. É a espera da utilidade oposta ao sentido da prepotência e do medo. Não é a espera tranquila, mas sim a da tensão da luta, do esforço, do caminhar incessante, contraditória em relação ao tédio ou à abundância. A esperança de Abraão é a espera confiante de que o ser pode transformar-se em um ser pleno. É a esperança de crescer, de renovar-se, de construir-se por etapas, de viver a história como um caminho rumo a uma meta. Todos nós podemos esperar do mesmo modo que, como ele, passamos momentos de desânimo, de solidão; momentos nos quais experimentamos a nudez que dissipa nossas ilusões, mas que permite também abrir-nos ao futuro que nos pode vir de Deus.
Abraão é também a memória. A Bíblia faz memória de uma pessoa que se converteu em personagem para renovar, acima do sentido histórico de veracidade, em nosso hoje sempre problemático, um sentido de esperança, abrir nosso presente tantas vezes sem alento, para um amanhã, para um futuro, para uma perspectiva melhor. A partir de Deus, abertos para Deus, permanece sua mensagem, sempre existe o futuro. O que será de nós? Perguntamo-nos muitas vezes. O que será de nosso mundo? Perguntam-se muitos de nossos contemporâneos, abarrotados na abundância de nossas sociedades de bem-estar. A pergunta pode ser, pois, uma expressão de angústia ou um anúncio de futuro, de um amanhã melhor e de um mundo mais humano. Para Abraão, todos temos futuro em Deus. Deus é o sentido, a esperança e o futuro da humanidade.

A Interpretação de Gênesis 1-11

Gilles Droullet inicia a temática deste capítulo chamando a atenção para um fator muito interessante:o que podemos observar quando comparamos os dois primeiros capítulos do livro do Gênesis com os nove seguintes. Os dois primeiros evocam um mundo em que tudo é harmonioso e perfeito, enquanto os nove seguintes descrevem o mundo atual com o mal sob todas as suas formas. Gênesis l e 2 descrevem o mundo de Deus, enquanto nosso mundo é descrito por Gênesis 3 a 11. Desse modo, o estudo fica dividido em três partes: Gn 1, sobre a criação em seis dias; Gn 2, sobre o jardim do Éden ou paraíso; Gn 3-11, discorrendo sobre o significado do pecado a partir dos episódios de Caim e Abel, o Dilúvio e a torre de Babel.
Em Gn 1, escrito por ocasião do exílio na Babilônia, o escritor Sacerdotal apresenta a criação do mundo como uma obra divina aplicando a Deus o modelo humano de organização do trabalho. Devemos ter em conta que este não se trata de um texto de caráter científico, por conseguinte, todo esforço pela concordância entre os detalhes próprios do texto e nossos dados científicos consiste numa atitude equivocada.
À primeira vista, temos a impressão de que se trata do nosso universo atual. O autor quer certamente dizer que tudo isso é bom e vem de Deus. Porém, quando olhamos mais atentamente à nossa volta, constatamos também a desordem, as tragédias, a violência, o sofrimento e, por toda parte, a morte. Nós sabemos que essa criação perfeita nunca foi concretizada. Assim, já que nunca houve criação perfeita, esse texto constitui também uma narrativa de esperança, um anúncio do mundo que Deus vai realizar no fim dos tempos.
O texto de Gênesis l quer dizer ainda que um dia, a criação será como Deus sempre quis: tudo será bom; quantos desejos humanos podemos encontrar nela impressos: que não haja o mal; que o sofrimento e a morte cheguem ao fim. São João afirmará que a Palavra pela qual Deus criou o mundo é seu próprio Filho: o projeto de Deus para a humanidade é uma criação perfeita.
Quando adentramos no estudo de Gn 2 vamos descobrindo que esse texto foi escrito pelo autor Javista 400 anos antes do relato da criação em seis dias. Por meio da simbologia do jardim do Éden ele expressa o projeto de Deus para toda a humanidade. Deus não está reservado apenas a Israel, mas, como criador do mundo, seu projeto diz respeito a todos os povos.
Na perspectiva dessa narrativa, Deus não cria exclusivamente por meio de sua palavra, mas age como um homem, como o oleiro que modela a argila, como um jardineiro que planta um jardim, entre outras “funções” especificamente humanas. O homem, sua criatura por excelência, cultiva e guarda esse jardim, sem conhecer esforço nem suor. É um mundo no qual a morte não existe, graças à presença da árvore da vida. A mulher é igual ao homem, o autor faz questão de expressar a harmonia interior existente entre o homem e a mulher pela nudez com a qual eles convivem com naturalidade. Finalmente, por meio da cena em que Deus caminha no jardim para conversar com o homem e com a mulher, ele manifesta a aliança de Deus com o homem.
Essa narrativa é, portanto, alegórica. Ela nos revela a vontade de Deus. Chama a atenção para uma harmonia necessária do homem: consigo mesmo; com os outros; com o mundo; e com Deus. Este não é autor do mal. Ele está em aliança com o homem, é perpetuamente um aliado do homem. Jesus proclamava: "O Reino de Deus está próximo" (Mc 1,15; Mt 4,17).  Ele retoma de maneira extremamente sintética a grande esperança das duas primeiras páginas da Bíblia: a esperança da criação perfeita e do paraíso. Além disso, palavra e ação nele se fundem. Ele mostrou, pelos seus gestos, aquilo que Deus quer, aquilo que será o mundo de Deus. Ele quer a igualdade entre o homem e a mulher. Dirigindo-se a todos os que eram marginalizados, ele revelou que Deus era e será o Rei, o protetor dos pequenos.
O próprio Jesus viveu dessa grande esperança de Gênesis 1-2. Ele mesmo aguardou a realização da plenitude que viria a este mundo em decorrência de sua própria ressurreição. Na hora de sua morte, ele faz referência ao jardim do Éden. E Deus, ao ressuscitá-lo, cumpriu nele as duas grandes profecias, a da criação perfeita e a do paraíso: Jesus é tido, na perspectiva cristã, como o novo Adão, o homem definitivo, no qual o projeto de Deus se realizou plenamente.
Nas narrativas de Gn 3-11 vamos imergir no imenso enigma do mundo, a razão pela qual Deus não pôde realizar o mundo a que sonhou: o problema do mal. “O autor” vai formando uma pintura do mal no mundo em quatro painéis sucessivos: o homem e a mulher no paraíso, o episódio de Caim e Abel, o dilúvio e a torre de Babel.
Em Gênesis 3-11, temos uma visão da humanidade desde o início até o fim dos tempos. O autor, ao mesmo tempo, descreve o mal observável no mundo, desvenda um mal interior presente em cada pessoa humana e desmascara as forças do mal, presentes no universo. Alguns aspectos do mal no mundo: O sofrimento e a morte (Gn 3), os assassinatos e as guerras (Gn 4), a corrupção e a violência (Gn 6-9), a divisão e a incompreensão (Gn 11).
Daí, vamos percebendo que a verdade de Gênesis 3-11 é sempre atual. Basta olharmos em torno de nós ou assistirmos aos telejornais, ou simplesmente olharmos para dentro de nós mesmos. A grande descoberta do escritor é a existência de um mal radical, interior, presente em todas as pessoas. Aí ele, mais uma vez, subdivide a questão em quatro quadros que se intercomplementam: o desejo do ser humano de se tornar “deus” por si mesmo (o fruto do conhecimento); a presença em nós de sentimentos que fomentam a violência, por exemplo, a inveja, o ódio (Caim mata Abel); o coração corrompido pelas forças malignas (o dilúvio); a ganância pela plenitude sem a graça de Deus (a torre de Babel).
O fruto a ser comido é bem singular... É algo bem distinto de uma maçã! O autor bíblico quer transmitir a seguinte mensagem: o homem e a mulher comem este fruto, de modo que nós também o comemos. Por isso que os nomes Adão e Eva são nomes simbólicos. Pois, é desde a chegada da humanidade no universo que o pecado existe. Mas este pecado original é também um pecado atual. Qual é esse "pecado", esse fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal?
Fica claro para nós que o desejo de Deus na Bíblia é uma vida plena para o homem. Se nós sonhamos em ser como deuses, é porque Deus, nosso Criador, semeou em nós essa busca por uma felicidade infinita: “o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus” (Sartre). Não há nada de mal nesta busca pelo infinito inscrita em nós. Contudo, a narrativa bíblica salienta que o homem e a mulher querem chegar à plenitude por si mesmos. Tal é o fruto que o homem e a mulher comem: o desejo de autossuficiência. Cada um gostaria que Deus não existisse para poder chegar à plenitude por si mesmo. A tentação permanente do ser humano é a de querer ser autossuficiente e se fecha a Deus. É esse fechamento que constitui o pecado.
Essa rejeição começou com a chegada da humanidade ao mundo, ou seja, com a chegada da consciência ao universo material. Somente o ser humano é capaz desse pecado, pois ele é o único ser capaz de operar um retorno a si mesmo, de se situar na existência e de se situar diante de Deus. Ele é o único sobre a Terra a participar do mundo material e do mundo espiritual. Ele é, assim, a consciência da matéria, o lugar no qual ela se torna pessoal e livre.
O que Gênesis 3 afirma é que desde que a humanidade emergiu no mundo, ela se considerou rica o suficiente para subsistir por si mesma. O momento da tentação coincide com a aparição da consciência e da liberdade no mundo. O exercício da liberdade do homem se orienta em direção a uma recusa. O fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, ser deuses por nós mesmos, é sempre sedutor de se comer.
Deus, tal como é apresentado no Gênesis, quer que nos tornemos como ele, o que se confirma ainda mais na perspectiva cristã: “Deus se tornou homem para que o homem se tornasse Deus”(Varillon). Por isso que o natural é o nosso desejo de nos mantermos centrados sobre nós mesmos. Consequentemente, a fé e a conversão exigem um arrebatamento de nós mesmos. Converter-se é transformar-se completamente, mudar o foco do olhar, descentralizar-se.
Daí que se torna imprescindível superar dois sentimentos que tomam conta da nossa existência se não formos vigilantes em nossas ações: a inveja e o ódio. Exatamente por deixá-los florescer que desde o início da história humana existem assassinatos e guerras no mundo. Caim que mata Abel: é a representação daquilo que se passa hoje em dia. Os homens continuam matando seus semelhantes, desrespeitando a vida, que é dom de Deus.
A narrativa do dilúvio revela a maldade que estava espalhada por toda parte.  O grande problema é que esse mal é interior, o coração do homem está corrompido. Por isso, é difícil de se diagnosticar a situação. Muitas vezes não percebemos “a bomba” que está prestes a explodir ou fechamos os olhos para determinada situação. Poderíamos dizer que estamos "nos dias que precedem o dilúvio": a corrupção e a violência estão por toda a terra.
Com a figura de Noé, apresentado como fiel a Deus, podemos novamente reconhecer a grande abertura de espírito: Deus permanece em aliança com o homem e com toda a criação. Noé, "o homem justo, íntegro, que andava com Deus"(Gn 6,9) é também uma prefiguração de Cristo, o qual, juntamente com os seus, será salvo do mundo atual para ingressar em uma nova criação. A arca de Noé é uma imagem da barca que é a Igreja, sacudida pelas águas que simbolizam as forças malignas. Contudo, é destacado também o símbolo do arco-íris ao qual, tanto no início como no fim da Bíblia, significa que, um dia, o dilúvio aconteceu, ocasionando, assim, o fim do mundo atual, mas que uma nova ordem do mundo será inaugurada, e a paz restabelecida. Essa deve ser a nossa razão de lutar e, consequentemente, viver o Reino e a esperança de Sua plenitude na vida eterna.
Relatando sobre a torre de Babel, o autor utiliza a expressão penetrar os céus, quer dizer, o mesmo que querer ser como deuses. É querer chegar à plenitude sem Deus. O marxismo foi um exemplo disso, mascarado numa promessa de estabelecimento da justiça, mas, na verdade, prometia à humanidade chegar a uma realização plena, sem Deus.
Atualmente, o projeto de uma sociedade unificada, conhecido como o fenômeno da "globalização", se apoia sobre o pretexto da aproximação dos povos, favorecida pelo notável desenvolvimento dos meios de comunicação. Contudo, uma vez mais, aquilo que é bom em si (ou seja, um projeto de unidade) é utilizado para a escravização da humanidade. Dominados pelo dinheiro, aqueles que têm o poder pouco se importam com o aspecto humanitário. Apresentando-se com a máscara da fraternidade, da igualdade, da unidade, uma elite anônima age às escondidas, buscando submeter as pessoas, dominá-las. Visam simplesmente à uniformização por meio da abolição de culturas particulares. O desígnio de Deus é exatamente outro: unir uma grande multidão, mas cada um guarda sua identidade (Ap 7,9). Sabemos da riqueza que existe na essência de cada cultura particular, levando em conta a diversidade de dons e carismas.
O projeto da torre de Babel continua em andamento, inspirado por um espírito de divisão que se apresenta como espírito de unificação. Nossa sociedade quer se realizar sem Deus. Entretanto, sem Deus ninguém se compreende (Gn 11,7-9). Pelo Espírito Santo, que é o Espírito de Amor, que a humanidade se reencontra e se respeita em suas diferenças.
Por trás da imagem da serpente se esconde um ser pessoal, anterior ao homem.  A Bíblia, de Génesis 3 a Apocalipse 20, indica que a rejeição a Deus é de responsabilidade do homem, produz-se sob a influência de uma força maligna que compromete a realização do projeto de Deus. Por isso não podemos estudar a Bíblia, com seriedade, nos silenciando sobre a presença de Satanás. Certamente esse ser não foi criado como uma criatura maligna, mas é certo que ele rejeitou Deus e que sua revolta repercute no mundo humano. Sua mentira mais perniciosa é a de apresentar Deus como aquele que diminui o homem, quando na verdade Deus quer completar o homem. O livro da Sabedoria nos chama a atenção para o fato de que o diabo tem inveja do homem e da mulher, porque estes ainda podem chegar à plenitude pessoal por meio de uma relação com Deus.
Um combate decisivo se estabelece desde o início da vida pública de Jesus, na qual Satanás está presente como o tentador. Aliás, o fato de Jesus ter sido realmente tentado é da mais alta importância; caso contrário, ele não teria realmente participado de nossa condição humana e não poderia ser o Salvador. De acordo com os evangelhos, Jesus foi tentado de todas as maneiras por Satanás em sua vida terrena, frequentemente por intermédio de seus próprios discípulos, por exemplo, Pedro, que queria um Messias conquistador (Mc 8,33). É tentado por todos aqueles que querem que ele imponha a fé por meio de milagres. Lucas revela que ele “crescia em sabedoria” (Lc 2, 40.52) para mostrar que ele meditou as Escrituras e viveu uma vida como um verdadeiro “campo de batalha”.
A Bíblia, ao mesmo tempo em que nos revela Deus com clareza, conscientiza-nos a respeito das forças do mal. Um Deus que convida o homem a que se volte para Ele, em vez de se fechar sobre si mesmo. Jesus nos revela, ao expulsar os demônios, que Deus permanece invencível e que um dia sua criação estará definitivamente liberta das forças do mal. O demônio é absolutamente contrário do que é Deus, pois o desejo manifestado por ele é o de querer passar por cima da vontade das pessoas, de fazer com elas o que bem entender, de as possuir. Deus, em contrapartida, nunca força a liberdade individual.
A Nova Era elimina claramente o Deus pessoal, substituindo-o pelas energias cósmicas ou pelo "divino em nós". O contexto pós-moderno ao perder a referência ou a base de sustentação da reflexão, do agir ético, etc., perdeu também o sentido para o qual deve caminhar nossa existência, que é Deus encarnado em Jesus Cristo. O que predomina hoje, relativismo, egoísmo que levam a mentiras e homicídios são, portanto, sinais de que o homem está possuído pelas forças do mal.
Jesus, no momento de sua morte, mesmo com todo aquele arsenal do mal que estava montado – traição, prisão, abandono dos discípulos, negação de Pedro, mentira, ódio, zombaria, rancor, martírio – ele não penetrou em tais formas do mal. Ao contrário, permaneceu fiel, livre, verdadeiro, sem ressentimento, nem desejo de vingança ou de dominação.
Portanto, refletindo sobre esses primeiro onze capítulos do livro do Gênesis, vamos notando que são “narrativas míticas” cujo objetivo essencial é o de remontar para o antes da criação, com vistas a relatar o projeto de Deus. Os autores compreenderam que "este mundo da existência humana não é nem pode ser aquele que Deus podia criar". Eles afirmam que nós fomos projetados para ser à sua imagem. De fato, segundo a Bíblia, Deus não nos criou pecadores. Percebemos isso transportando o Deus do Êxodo para o começo do mundo, ao modo do escritor Javista, segundo o qual viu o Criador como aquele que sabia que teria de salvar a criatura. Deus previu que seria rejeitado. Nesse sentido, para os autores, Deus viu com antecedência toda a história do pecado da humanidade. E então, acrescentam eles, com antecedência ele nos respeitou. O homem e a mulher é que permitem que as forças do mal os atinjam. Sendo assim, "segue-se que o mal só é atribuível a Deus na medida em que ele respeita a liberdade humana."
A partir do instante em que a relação com Deus é rompida, o homem e a mulher veem por si mesmos que estão nus, o que é diferente de constatar a diferença de sexo um do outro! Sem Deus, encontramo-nos verdadeiramente nus, num enorme vazio. Além do mais, o homem e a mulher espontaneamente se escondem, o que significa que são julgados por si mesmos. Deus, por sua vez, procura-os. De sua parte, a aliança nunca é rompida. Ele continua a amar. E a única coisa que ele faz é constatar o que o homem e a mulher decidiram. Deus não fixa o destino dos seres humanos. Cada um fixa seu próprio destino. Jean-Paul Sartre, na obra O existencialismo é um humanismo já afirmara: "O homem será aquilo que ele fizer de si".
Aqui reside um dado essencial do amor. Quando se ama, deve-se reconhecer diante de si uma outra liberdade. O inferno não é uma criação de Deus, mas uma possibilidade humana. E se afirmamos que o inferno não existe, queremos dizer que não somos livres. Dessa forma, através dos onze primeiros capítulos do Gênesis, uma grande esperança se desenha, apesar do mal existente. Suas páginas nos apresentam um Deus benevolente. Ele vê toda a humanidade fechada a ele e, mesmo assim, anuncia uma vitória da humanidade sobre as forças do mal. Ele vê toda a maldade do homem sobre a terra e ainda se mantém em aliança com ele e com toda a criação, é uma das mais belas traduções do amor pleno: apesar do mal que os homens podem fazer, eles não podem impedir Deus de realizar o mundo tal como ele desejava, perfeito.
Outro aspecto interessante é o fato de que os autores fazem a idade dos homens diminuir progressivamente. Isso apresenta um significado teológico profundo: quanto mais o mal se propaga na humanidade, menos o homem vive. A ressurreição de Jesus é a garantia de Deus sobre as profecias do Gênesis. Deus é fiel, e esse lado bom do mundo nos conduz a espreitar o que será o mundo futuro.

Referência bibliográfica
DROULLET, Gilles. Compreender o AT. São Paulo: Paulus, 2008.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

O CONTEÚDO DA BÍBLIA

A Bíblia contém 73 escritos que estão agrupados em dois "Testamentos", o Antigo e o Novo. Destes, 27 escritos pertencem ao NT, que é literatura nitidamente cristã. O Antigo Testamento é literatura judaica. O termo "testamento" é uma tradução equívoca do original hebraico berit, que significa "aliança", "pacto".
A ordem em que se encontram os escritos da Bíblia não é a ordem em que foram compostos. Gênesis não foi o primeiro a ser escrito, nem o Apocalipse foi o último. Encontram-se ordenados segundo temas e gêneros literários - todos os históricos juntos, os profetas juntos, etc. Exceto o bloco que vai de Gênesis a Reis, a ordem dos escritos do Antigo Testamento pode variar de uma Bíblia para outra. Isto se deve ao fato de que a sequencia é diferente na versão hebraica e na grega (e latina). "Gênesis" (a primeira palavra deste livro, em grego, significa "origem, início"; (em hebraico é bereshit) não era o título do primeiro escrito que encontramos na Bíblia, nem "Evangelho segundo Mateus" era o título do primeiro Evangelho que encontramos no Novo Testamento. Original era somente o texto. Os títulos foram colocados mais tarde por razões práticas, para distinguir um escrito de outro.
Nenhum dos escritos da Bíblia estava originalmente dividido em capítulos e versículos. Os subtítulos que encontramos (e que variam de uma Bíblia a outra) tampouco são originais. Ocasionalmente, são equívocos: a parábola conhecida como "do filho pródigo" (Lc 15,11ss) não se centra no filho, mas no pai misericordioso, portanto, deveria ser intitulada "parábola do pai misericordioso"- além do que a parábola fala também do outro filho que ficou em casa.  Vista do lado de Deus, a Bíblia apresenta a história das ações de Deus na história dos homens, desde as origens até sua expressão definitiva em Jesus Cristo, e projetando-se para o futuro. Vista do lado dos homens, a Bíblia inclui experiências pessoais de muitos indivíduos, seu diálogo com Deus, suas atitudes de obediência ou de infidelidade, suas reflexões e sua sabedoria. Em outras palavras, levando em conta os diversos gêneros literários que encontramos na Bíblia e o fato de que ela abarca mais de um milênio de história, vem a ser a história singular, sempre atual (pois se fazem as mesmas perguntas, e se apresentam as mesmas atitudes humanas) do diálogo entre Deus e os homens, dos chamados de Deus e das sucessivas respostas dos homens. Os diversos personagens encarnam atitudes humanas que frequentemente são representativas e expoentes das pessoas de hoje.
 
O Cânon bíblico
A palavra "cânon" vem do grego; designava uma vara para medir. Por extensão, significava também regra ou norma (cf. 2Cor10,13.15.16; Gl 6,16). Este termo era usado para referir-se aos critérios e às regras literárias ou artísticas, por exemplo. O cristianismo adotou este termo para referir-se à coleção de escritos que considerava inspirados por Deus e que, como conjunto, constituíam a regra ou norma para a fé e para a vida do crente. O termo "cânon" foi usado, então, para designar a coleção de escritos "inspirados" e para sublinhar seu caráter normativo, quer dizer, de regra ou de norma de vida.
 
Diferença entre a Bíblia Católica e a protestante
A diferença entre a Bíblia católica e a protestante gira em torno da lista de livros judaicos pelos quais se regem. Os católicos regem-se pela lista da LXX, que é a mesma que a Vulgata, portanto, incluem como canônicos os sete escritos chamados deuterocanônicos. Este são Tobias, Judite, Sirácida (Eclesiástico), Sabedoria, Baruc e 1 e 2 Macabeus, além dos acréscimos em grego a Ester e a Daniel. Os protestantes regem-se pela lista da Bíblia hebraica, que não inclui os deuterocanônicos. Esta é a diferença substancial entre a Bíblia católica e a protestante. Além disso, tem a questão da tradução, que eles têm uma forma “diferente”, uso de determinadas palavras em algum contexto específico. Também com relação a notas de rodapé, na tradução deles não constam comentários críticos.