Escola Paroquial da Fé
Paróquia de São João Batista - Viçosa, MG :.....: Curso de formação pastoral para leigos.
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
terça-feira, 7 de outubro de 2014
ÊXODO: ACONTECIMENTO E PALAVRA
Podemos considerar a
experiência do Egito como uma constante tensão (Deus se esqueceu do povo?) e,
ao mesmo tempo, uma distensão (YHWH se lembra da promessa). Muitos estudiosos
da Bíblia ou teólogos já se adentraram numa exploração do Êxodo, relacionando-o
com o novo caminho de "libertação" da América Latina. É um evento
querigmático, provocador, criativo, inexaurível, tomado justamente para uma
leitura verdadeira da teologia da libertação.
O Êxodo é o
acontecimento-chave, que modela a fé de Israel. Em todas as religiões, a
cosmogonia exerce uma fascinação dramática. É forte o prestígio das origens,
contudo, para além dos fenômenos do mundo físico, a cosmovisão hebraica
constrói um outro epicentro: o acontecimento salvífico do Êxodo. O Êxodo, como
fato histórico e salvífico, é tão original que atrai para si a experiência da
criação. Por conseguinte, ele se converte em uma "reserva de sentido"
inesgotável.
Uma chave hermenêutica
importante: toda experiência humana gera sua "palavra". Sabemos que um
acontecimento não é visto como decisivo na história de uma pessoa ou de um povo
no momento em que acontece, mas depois de certo tempo, logo após ter
"doado" sua energia recriadora. Isso fica claro em nossa experiências
pessoais que estão cheias dessas manifestações-de-sentido.
O Êxodo sempre significou para
eles a "origem" ontológica de sua realidade presente, ou se convertia
em "memória" interpelante, quando deixavam de ser livres. O sentido
latente do primeiro êxodo foi acontecendo como prolongamento linear daquela
libertação e passou a se expressar em uma "palavra". Não se trata de
um fato isolado que aconteceu por volta do século XIII a.C., mas de um fato
refletido, aprofundado, explorado pela fé e captado em todas as suas projeções
até a fixação do relato atual. Por isso podemos considerar como sendo uma mensagem
profunda, pois contém a significação de uma experiência: Sofrimento do povo e
ação amorosa de Deus.
Quando um acontecimento é
contemplado do ponto de vista da fé e se reconhece nele a manifestação de Deus,
a palavra-relato que lhe "dá novo significado" é interpretada como
Palavra de Deus. É sempre memória e é sempre anúncio. O passado se torna
"promessa" para o ouvinte dessa Palavra.
O acontecimento salvífico, uma
vez aprofundado, é visto como desígnio, ou seja, como tendo sido preparado
antes de se realizar. Numa cosmovisão mítica, pode ser explicado
antecedentemente como destino. Por exemplo, quanto mais significativo o êxodo,
tanto mais aparece como disposto nos planos de Deus. É muito usada a linguagem
da vocação: uma forma de narrar o sentido mais profundo de um acontecimento a
partir do mesmo. Portanto, o êxodo é o acontecimento programático da experiência
religiosa de Israel e que pode inspirar a vivência de fé de muitas outras
pessoas que nele se aprofundarem. Além do mais, inspira correntes teológicas,
como por exemplo, a Teologia da Libertação na América Latina, que visam a
promoção da vida humana, lutando contra qualquer forma de escravidão e de
exploração.
Esse é o exemplo de um
acontecimento como outros fatos históricos que são vividos por minúsculos
grupos humanos, cientificamente determinados, mas que dão origem à descoberta,
por trás deles, de uma presença de Deus agindo amorosamente em vista de sua
libertação.
Toda exploração vem acompanhada
de uma prepotência ignominiosa. A alienação dos hebreus chega a tal ponto que
eles se tornam incapazes de esperar a salvação. Não se trata de uma
infidelidade à graça, mas de uma alienação total do homem, que anula a própria
esperança, última possibilidade de libertação. Muitas pessoas não são capazes
de reconhecer suas próprias capacidades e se tornam alheias à sua realidade,
com isso tantas “abominações” acontecem, “pessoas erradas” assumem o poder,
porque aqueles que deveriam assumir determinada função não a fazem. É possível que esta frase seja vista por
alto, mas nela está imersa toda uma violência aniquiladora, quando a
redescobrimos em tantos casos concretos: o oprimido se "integra" de
tal maneira com o opressor e em sua própria situação de oprimido, que não
imagina outra possibilidade que o "liberte".
O alienado não somente não tem
consciência do que pode "ser" ou fazer, mas aceita a idéia de que as
coisas não podem ser de outra maneira. O êxodo engendrará a consciência de
liberdade do povo de Israel. Este relato é interpretação do acontecimento. É
para dramatizar a presença do Deus libertador. Os hebreus, com efeito, eram
numerosos e isso constituía um perigo político para a segurança interna do
reino. Por isso, encarregaram as parteiras de matarem os filhos varões. Este
panorama conota a opressão social e a condição a qual os hebreus eram mantidos.
Podemos considerar a libertação
dos israelitas do Egito como um acontecimento de âmbito político e social. Deus
não começou salvando em nível espiritual, nem sequer de pecado. Salva o homem
total, cuja realização humana pode ser impedida não só por ele mesmo, mas
também pelos outros homens que abusam do poder ou de seu "status"
social.
Os mitos mesopotâmicos antecederam
os relatos bíblicos, mas, se por um lado a situação do mito mesopotâmico parece
mais autêntica: o homem se rebela e luta, ao passo que o "clamor" dos
filhos de Israel parece mais passivo, clamam a Deus em vez de agir; por outro
lado, a cosmovisão mesopotâmica não aponta nenhuma saída libertadora como
acontece com a libertação do povo de Israel. Muitos teólogos afirmam que foi o
acontecimento, em suas próprias entranhas, que foi manifestando uma presença
divina com todas as suas implicações, inclusive a Aliança.
O clamor indica que o povo
começa a conscientizar-se e, portanto, começa a trilhar o caminho da
libertação. Quando clama e eleva seu grito de protesto e denúncia. Nos relatos
vocacionais de Êxodo 3 e 6, YHWH é apresentado como sabedor da opressão do
povo. Como é próprio do seu modo de agir, escolhe um intermediário como líder,
neste caso Moisés. Ele, apesar do medo, responde positivamente, porém, uma
recusa ao chamado significaria, como ainda significa, uma perda do próprio
"ser".
A palavra de Deus é
conscientizadora, tem caráter salvífico e vocacional. Moisés tinha medo devido
à grandeza de sua missão. O seu diálogo com YHWH tem a intenção de abrandar o
coração do povo, o desafio é aquele que oprime. Notamos que o opressor nunca
liberta nem se liberta, pelo contrário, quando surge um movimento de libertação
que o atinge, então ele oprime com mais violência. Todo este conflito é
significativo, pois prepara o grande momento da libertação como uma ato de
força de Deus. Na narrativa do êxodo, a força de Deus foi superior à do faraó.
No entanto, hoje, existe uma consciência muito clara de que, além da graça de
Deus, não há uma força superior à do povo unido e comprometido.
O ritual da Páscoa é o memorial
do acontecimento salvador. Forma um círculo hermenêutico: do acontecimento
arquetípico ao presente existencial (êxodo - libertação do povo - Páscoa de
Cristo - continuidade - processo atual de libertação). A partir da saída do
Egito, o opressor deixa de sê-lo, pois perde seus escravos, mas mesmo diante daquele
processo libertador o povo ainda se permitiu uma última dúvida (Ex 14, 11ss).
Trata-se de um episódio paradoxal, só o próprio acontecimento revela todo o seu
"sentido".
Podemos perceber na narrativa
do canto triunfal uma forma de expressão do sentido. A saída do Egito e a
entrada na terra prometida são correlatos, um aprofunda o sentido do outro num
constante processo dialético e marcadamente significativo.
A narração conta mais do que
aconteceu exteriormente no ato da libertação. É interpretação, que nunca
deforma o acontecimento, mas o enriquece com uma visão mais profunda. A
história bíblica é manifestadora de um sentido, mais que reprodução de fatos
contingentes. Uma história sagrada não pode coincidir com uma crônica comum,
ela manifesta o desígnio e a significação da história conhecida pelos homens.
O êxodo foi "a"
experiência de salvação, entendida pelo povo em termos de libertação.
Compreende-se a Deus como salvador, porque Ele atua na história dos homens e,
por isso, também, libertação não é simplesmente
um conceito adventício, mas o centro do querigma bíblico. Percebemos, ainda,
que na história da salvação, Deus se serve de mediadores humanos. Portanto,
Deus se revela tanto através do acontecimento, como através de uma pessoa. Era
mais fácil para os hebreus crer em YHWH diretamente, do que em Moisés, ser
humano como eles, mas esse mesmo Deus se expressava através de Moisés, o qual
tinha que assumir essa forma histórica e pessoal da vocação para a liberdade.
A fé bíblica, que não é
intelectual, mas dinâmica e existencial, se expressa em várias dimensões:
fé-reconhecimento de Deus, fé-compromisso à Palavra, fé-força no testemunho,
fé-abertura ao dom de Deus e fé-aceitação do enviado. Nossa história teve e
tem, sem dúvida, novos Moisés que dizem sua palavra de conscientização
libertadora. Fica uma questão para pensarmos: tem alguém disposto a ouvir?
A consciência de liberdade de
Israel, depois de refletida e amadurecida, se eleva à categoria de mensagem
para todo homem. Contudo, se a liberdade é um dos valores intrínsecos do homem,
por que, principalmente, na América Latina, a Igreja, às vezes, se faz tão
alienada a ponto de não ver os sinais dos tempos, que mostram claramente o
caminho da libertação? Quantas vezes insistimos em estruturas e discursos que
não conseguem responder à problemática do contexto ao qual estamos inseridos?
A prática do amor, num contexto
de opressão, exige luta. Todo caminho de libertação se realiza quando se
suprime o poder opressor e se instaura outro poder, o salvífico. A justiça é um
bem radical, que reclama do amor uma “atitude violenta”, ou seja, deixar o
comodismo de lado e ousar fazer diferente diante do novo que se apresenta. A
liberdade é um dom tão íntimo e exigente que, quando está obscurecida ou perdida,
procura a libertação a qualquer custo. O Deus da paz é antes o da justiça e da
liberdade. A paz é pecado quando serve para manter a injustiça.
Referência
bibliográfica
CROATTO, J. Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade.
São Paulo: Paulinas, 1981.terça-feira, 16 de setembro de 2014
Abraão: a vida, uma aventura sem limites
José Alegre Aragüés
Vamos
discorrer sobre um personagem que gostaria desde logo de anunciar como
apaixonante. Se já o título traz esse sentido de entender a vida como uma
aventura sempre aberta, é porque o protagonista possui todas as características
de um ser humano aberto, dramático e, acima de tudo, portador de esperança. Seu
ciclo integra-se na fase que denominamos a história dos patriarcas. Até o
capítulo 12 do Gênesis, a Bíblia esteve nos falando de uma história comum a
toda a humanidade; é a história do mal, a história de nossa própria realidade,
a história de nossa condição, que afeta todo ser humano. A partir de Gn 12 até
o final do livro, seu intento é desenvolver outra história, diferente.
Se
até então contou-nos a história do mundo, não foi porque quis contar-nos os
fatos que deram origem ao mundo físico, mas para responder à pergunta sobre o
que é o ser humano e quais as causas que o condicionam para que seja como é e
se encontre sujeito a uma realidade tão problemática como a que vemos em nós mesmos
e ao nosso redor. Para alguns, essas narrativas têm, pois, uma interpretação
simbólica, pretendendo responder à seguinte questão: o que é o ser humano? Para
outros, manifestam uma preocupação etiológica, ou seja, averiguar a causa: por
que somos e agimos assim. O problema do mal e a relação do ser humano
com o mal. Porque existe o mal,
eis a eterna pergunta a que incessantemente a realidade
nos
remete, e que está presente nestes 12 primeiros capítulos do Gênesis com a
mesma intensidade com que nos é apresentada ao longo de toda a nossa vida,
motivando tanta literatura, discussão e ressentimento.
A
partir, pois, dessa história do mundo, começa a história do povo. A seguir, a
narração bíblica vai centrar-se na história própria de uma comunidade e Deus
continuará a ser o dono e o criador da história em sua totalidade, ainda que
isso permaneça um tanto oculto, embora não menos real. Esta história, que vai do
capítulo 12 ao 50, com que termina o Gênesis, é um pequeno mundo. Em sua forma
atual, ela nos é apresentada como a história de uma família ao longo de três
gerações, na qual palpita a época nômade e seminômade das tribos de Israel. Apresenta-se,
pois, como um prefácio a toda a história nacional. O autor demonstra grande
delicadeza e domínio para tecer os diversos relatos. Tem fluência, mantém
continuidade ao descrever a emigração de Abraão, a sorte de seu filho e de seu
neto até concluir no grande funeral que transporta o cadáver de Jacó para a
Palestina, após contemplar como seu filho José foi elevado ao poder e à máxima autoridade
no Egito. Assim, esses relatos existiram antes de forma independente, e só mais
tarde foram inseridos nesta grande história, motivo pelo qual eram contados
como histórias individuais que se transmitiam de geração em geração.
Com
o correr do tempo e de acordo com os lugares, muitos detalhes dessas histórias
mudaram, outros foram esquecidos, a outros acrescentaram-se algumas coisas, um
mesmo fato foi atribuído a per onagens diversos, encontrando-se repetido. No
final, entretanto, todos correspondem a essa história, unificada pelo últimos redatores
no séc. V a.C. As narrativas de Abraão procedem de três fontes: a javista, a eloísta
e a sacerdotal.
1. Cronologia:
história ou mito?
Situar
Abraão cronologicamente: descobrir e reconhecer os dados históricos é uma
tarefa muito difícil. Todavia, pelos dados que temos à nossa disposição, hoje
sabemos que pode ser
situado nos séculos XX ou XIX a.C. Ademais, a propósito desses dados, houve
três tipos de interpretação que, apesar de tudo, coexistem: interpretação
historicista, crítica radical
e histórico-crítica.
Entretanto, a primeira aceita como histórica toda a narração, assumindo até as
contradições cronológicas. Hoje, todavia, muitas pessoas estão empenhadas não
só em entender literalmente a Bíblia, mas também em aduzir argumentação
cronológica em tudo. A segunda, que se manifestou principalmente em inícios de nosso
século, opõe-se a toda a historicidade, tencionando ver apenas uma composição
literária, uma ficção que se põe a serviço de uma teologia da história, vale
dizer, seriam reunidas algumas tradições legendárias para dar-nos um sentido da
história e da vida humana. A terceira, que predomina hoje entre os estudiosos
da Bíblia, é aquela que, servindo-se das descobertas arqueológicas dos últimos tempos,
reconhece um fundo histórico em grau muito mais intenso do que se havia pensado
até agora, com base no qual se elaborou uma reflexão teológica que pretende
transmitir uma visão em torno do ser humano com suas angústias, sua solidão,
sua esperança e sua função na experiência religiosa.
Por
essa razão, ao falar do ciclo de Abraão, é preciso que se faça uma pergunta:
estamos diante de uma realidade histórica ou
pré-histórica?
Supondo-se que se entenda por história as etapas e culturas da humanidade cuja
documentação literária ou arqueológica possuímos, a época de Abraão dispõe hoje
de dados literários e arqueológicos abundantes. Precisamente as descobertas
arqueológicas permitem ampliar incessantemente os limites do que denominamos
história e, desse modo, Abraão estaria situado próximo à linha de separação entre
história e pré-história inserido, porém,
na primeira. De fato, os nomes de pessoas,
lugares e cidades que aparecem são encontrados também nas tabuletas de argila
que têm aparecido nos sítios arqueológicos de Mari, Ebla etc. e que em número
superior às 20 mil redigidas em várias línguas de tronco comum semita testificam-nos
os nomes de Abraão, de Sara e também costumes que refletem com muita semelhança
o modo como o faz o Gênesis.
Assim,
se entendemos por história tudo o que acontece a partir de um momento
fundamental que confere unidade e coerência aos avatares (espírito) de um grupo
humano, nesse caso Abraão faz parte da pré-história de seu povo, uma vez que se
entende esse povo constituído como tal no evento do Êxodo e Abraão é,
efetivamente, anterior ao século XIII. Abraão é então uma figura mítica ou
real? A questão não é tão radicalmente clara, pois observamos continuamente que
figuras de nossa história são continuamente transformadas pela literatura em meios
para expressar uma mensagem ou uma concepção sobre a vida ou alguma realidade
humana. Existem personagens que fazem parte do mito ao mesmo tempo em que, sem haver existido,
são ficção para falar-nos de nossa própria realidade. Dom Quixote não existiu
e, não obstante, em todos nós ocorre a realidade idealista que reflete o
Quixote, em oposição à materialista encarnada em seu escudeiro. Igualmente,
temos conhecimento de pessoas que existiram e construímos sobre elas toda uma
ficção literária, utilizando-as para transmitir um sentido do que entendemos
sobre a vida. O fato de ser a novela histórica um fenômeno tão atual entre nós
conserva exatamente esta que foi uma constante no decurso da história literária
da humanidade: servir-se de personagens
significativas para
enfatizar muito
mais o significado da veracidade histórica. É o mesmo que ocorre no cinema e na
pintura. O pintor tenciona transmitir não tanto o que seus olhos físicos veem,
mas os traços da personalidade de um personagem e as características do que
constituía a preocupação do viver em sua época.
Seja
como for, o ciclo de Abraão forma um complexo literário que separa a história
da humanidade da história de um povo, razão pela qual o colocaríamos na pré-história.
Sua vida adquire sentido à medida que, vivendo os dramas e as alegrias de todo
povo e de todo ser humano, é portador de
esperança
para toda a história da humanidade. O que temos, pois, diante de nós? Talvez
uma leitura exemplar e idealizada de um antepassado. É possível que a história
de Abraão a nós transmitida, tal como fazemos nós e todos os povos, não seja
mais que uma projeção idealizada sobre um personagem do qual, por ser nosso,
antepassado, queremos salientar uma série de qualidades. Pode ser também a síntese da própria história do povo. Um povo ao qual também
coube deslocar-se para preservar sua fé, sua identidade; e para ser portador de
algumas promessas na história da humanidade. A história de Abraão pode ser
também a expressão da história pessoal de
todo
ser humano, que nos cabe carregar com a inquietante tarefa de encontrar nosso
"lugar", que nos toca suportar com a missão de buscar nosso próprio
futuro, no decurso da qual devemos superar muitos obstáculos, muitas
dificuldades, muitos desânimos, esperando ou perdendo a esperança da realização
plena de nossas aspirações mais profundas. Tudo isso é o que temos diante de
nós.
2. A pessoa
Afinal,
quem era Abraão? A pergunta concreta leva-nos ao encontro com a pessoa. É-nos
informado que era filho de Térah, originário de Ur dos caldeus, de onde tem de
sair para dirigir-se a Harrã, em direção a Canaã, com toda a sua família. Terá
de voltar a deixar Harrã para aproximar-se mais de Canaã. Uma coisa está clara:
ao falar-nos de Abraão, a Bíblia começa com o fato de uma saída e com o fato de
uma experiência religiosa: "O Senhor disse a Abraão: 'Parte da tua terra,
da tua família e da casa de teus pais..."' (Gn 12,1). Eis aqui uma constante
em sua vida: sair, caminhar. Em poucos versículos, nossa mente fica repleta de
referências de lugares para onde deve dirigir-se: Ur, Harrã, Canaã, Moré,
Betel, Négueb, Egito, retornando a quase todos eles e percorrendo-os à larga e
em toda a amplitude. A impressão que causa de modo imediato é a de que nos
encontramos diante de alguém cuja vida é caminhar.
Muito
embora seu caminhar esteja sempre unido à experiência religiosa toda especial
como a de manter uma relação pessoal com um Deus único que o tira
constantemente das casas de seu xadrez. Sente nostalgia de uma terra que lhe
foi prometida, e em todas quantas percorre encontra-se sempre como estrangeiro.
Dramática, e ao mesmo tempo irônica, é a narração da morte de sua esposa, a quem
quer dar sepultura em um pedaço de sua propriedade e tem de pedir o favor aos
proprietários hetitas para que lhe permitam adquirir o direito de propriedade
sobre um túmulo. Esse Deus que o faz caminhar e lhe promete uma terra
promete-lhe também um filho. Entretanto, não chegam a ele nem terra nem filho.
E tem de continuar sempre esperando. É-lhe anunciado um filho, envelhece e não
o tem. Finalmente chega um, mas não é o herdeiro e tem de continuar esperando.
3. A questão do
monoteísmo
Essa
conexão de experiência religiosa com um único Deus em meio a culturas politeístas fez surgir uma questão: com Abraão, a história
religiosa da humanidade experimenta um salto qualitativo em um duplo movimento.
A questão do monoteísmo: como chega Abraão ao monoteísmo em meio a culturas
politeístas? Sabemos que o politeísmo era uma forma acomodatícia, um sentido
que justificava formas de vida e de poder. Ele, no entanto, passa para um
monoteísmo transcendente, porém ao mesmo tempo histórico, no qual reconhece a
Deus como o único Senhor do mundo e da história.
Continuará
a conviver com as formas religiosas politeístas cujas práticas ele aceitará nos
demais e diante de quem, às vezes, terá de esconder sua própria concepção. Existe
um texto muito antigo, o Apocalipse de Abraão, texto apócrifo de origem judaica
que, todavia, em sua versão atual revela alguma influência cristã e também
gnóstica, que nos dá uma chave para a compreensão
do
problema. Térah, pai de Abraão, é construtor de imagens, escultor, e dedica-se
a esculpir imagens de deuses, estatuetas que logo vende para satisfação da
religiosidade popular. Abraão ajuda-o na comercialização e em suas andanças
comerciais percebe que essas estatuetas lhe caem e quebram-se ou o fogo noturno
do lume toma-as e as consome.
Devido
a essas experiências, cai em profunda crise
religiosa: "Estas
imagens produzidas por meu pai não podem ser realmente deuses se os elementos
as destroem com tanta facilidade". Que valor têm, pois, esses deuses? Como
podem ser deuses? A crise em que se vê imerso é enfrentada em seu ambiente e,
em virtude do
caráter nacionalista daquela religiosidade, vê-se obrigado a sair, fugindo de
seu próprio mundo. A partir dessa perspectiva, encontrar-nos-íamos com um
Abraão surpreendente, um homem inquieto, profunda e sinceramente religioso, que
busca a Deus e se esforça por purificar sua fé. Esse homem que busca a Deus
encontra-se com um Deus que o chama. Deus sai ao encontro do homem
que o busca. Partindo desse esquema bíblico, revelação de Deus e vocação humana
estão profundamente ligados, são interdependentes.
Chamado
e resposta formam um conjunto inseparável e intercambiável, porque quem chama a
Deus encontra-se com sua resposta, e Deus, por sua vez, chama também a partir
das inquietações e aspirações mais profundas do ser humano.
4. A vida como
caminho
A
partir desse encontro com Deus, a vida de
Abraão,
assim como a de todos nós, passa a ser
aventura sem
limites, um caminhar incessante para a maturidade,
para a plenitude, em uma sucessão ininterrupta de etapas que
conduzem a metas mais altas ou profundas, em
cujo fundo, porém, sempre presente e por vezes
oculto,
aparece um Deus que acompanha
constantemente o homem e que é a força fundamental de sua esperança
e de seu caminhar. Foi acaso sua evolução religiosa para o
monoteísmo a faísca que provocou a ruptura com o politeísmo
ambiental e que o obrigou a abandonar seu ambiente a fim de evitar
a hostilidade de seus compatriotas, uma vez que foi a maneira
de construir e manter sua identidade humana e religiosa? Abraão necessitava
desde logo um novo lugar onde expressar sua identidade e
onde pudesse viver com fidelidade suas próprias
convicções,
mas também Deus necessitava de um agente que constituísse um novo elo no
processo de dar-se a conhecer de maneira pausada porém progressiva
e pedagogicamente à humanidade.
Outra
experiência crucial na história religiosa da humanidade é constituída pela
questão dos sacrifícios humanos (Gn 22), sempre presente até épocas bastante
recentes (sabemos que as culturas pré-colombianas mantinham esse costume). Não
é preciso ir muito longe, já que algumas formas religiosas de fanatismo exigem
atualmente sacrifícios humanos. E os meios de comunicação encarregam-se de fazer
chegar a nós imagens dramáticas de ritos desse tipo. De qualquer maneira, era
um costume muito difundido nas culturas antigas, atestado também entre os
cananeus. A Bíblia nos apresenta o sacrifício de Isaac como uma prova. Em uma
narração magistral, o autor previne os leitores: "Ora, depois destes
acontecimentos, Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: 'Abraão'; ele respondeu: 'Eis-me
aqui'. Ele prosseguiu: 'Toma o teu filho, o teu único, Isaac, que amas. Parte
para a terra de Moriá e lá o oferecerás em
holocausto sobre uma das montanhas que eu te indicar"'.
É
o filho, a esperança, o futuro. Nesse sentido, a Bíblia nos acautela. Não se
trata de repetir um sacrifício. Não se trata de que este Deus exija sacrifícios
humanos. Efetivamente, porém, reporta-se a tradições antigas nas quais
aconteciam tais sacrifícios e nas quais, em dado momento, uma nova experiência
religiosa entendeu que era necessário erradicar esse costume. Alguns
pretenderam estabelecer um paralelismo entre Isaac e Jesus. Eu diria melhor
referindo-me a ambos como dois momentos muito importantes no processo de dar-se
a conhecer Deus à humanidade. Em Isaac, supera-se o sacrifício humano,
substituindo-o pela vítima animal. No NT, não é um sacrifício de animais. É a
oferta livre e consciente que alguém pode fazer
de sua própria vida pelos outros. São o trabalho e o esforço cotidiano por
fazer uma terra nova e por testemunhar o Deus de Jesus, um Deus extraordinariamente
humano.
5. A mensagem de
esperança
Depois
disso, entramos na questão da mensagem. Sobre um fundo histórico ou com base em
algumas narrativas que têm um fundo histórico, embora não saibamos até que
ponto o sejam, esconde-se, como em toda a Bíblia um processo de reflexão elaborado
ao longo de muito tempo. Trata-se de processos
que
constituem sempre meios para transmitir-nos a
visão e a
concepção sobre a vida, a nós que, no entanto, estamos
inseridos nela
e, passando por ela em etapas sucessivas, indagamo-nos constantemente: o que é
a vida, ou o que é a história? Qual o sentido de todo esse acontecer que
vivemos? Onde encontrar um sentido para a vida e como pô-lo em prática? Há
lugar para a esperança? Centraliza-se exatamente aqui a mensagem de Abraão.
Abraão
é o personagem da promessa. Guarda como fundamento de sua vida o fato de ser
portador de uma promessa para a humanidade e, nesse sentido, é o personagem da
esperança. Esperança que se manifesta em um duplo aspecto: um filho que é o
futuro, e uma terra na qual realizar essa grande promessa, onde viver. Duvida e
encontra-se continuamente em meio a sua vida na nudez da solidão, longe de sua
terra, de sua cultura e de sua família. Além disso, tem de renovar sua própria
imagem de Deus, o sentido da promessa que espera. Sempre em um processo de
renovação contínua, mas sempre em um processo de espera. Sua espera não é a que
brota do desespero, mas a espera paciente e vagarosa. Esperar, segundo ele, é como amar
ou criar, é como semear. Sempre como quem, em meio a tudo, encontra uma rocha
na qual se apoiar. E essa rocha é sempre a convicção da companhia de Deus.
É
espera da esperança, contraditória em relação à desesperança. E também a espera
da fé, oposta ao sentido da incredulidade, da desconfiança, do cinismo. É a
espera da utilidade oposta ao sentido da prepotência e do medo. Não é
a espera tranquila, mas sim a da tensão da luta, do esforço, do caminhar
incessante, contraditória em relação ao tédio ou à abundância. A esperança de
Abraão é a espera confiante de que
o ser pode transformar-se em um ser pleno. É a esperança de crescer, de renovar-se, de construir-se por etapas, de viver a história como
um caminho rumo a uma meta. Todos nós podemos esperar do mesmo modo que, como
ele, passamos momentos de desânimo, de solidão; momentos nos quais
experimentamos a nudez que dissipa nossas ilusões, mas que permite também
abrir-nos ao futuro que nos pode vir de Deus.
Abraão é também a memória.
A Bíblia faz memória de uma pessoa que se converteu em personagem para renovar,
acima do sentido histórico
de veracidade, em nosso
hoje sempre problemático, um sentido de esperança, abrir nosso presente tantas vezes sem alento, para um amanhã, para um futuro, para
uma perspectiva melhor. A partir de Deus, abertos para Deus, permanece sua
mensagem, sempre existe o futuro. O que será de nós? Perguntamo-nos muitas
vezes. O que será de nosso mundo? Perguntam-se muitos de nossos contemporâneos,
abarrotados na abundância de nossas sociedades de bem-estar. A pergunta pode
ser, pois, uma expressão de angústia ou um anúncio de futuro, de um amanhã melhor
e de um mundo mais humano. Para Abraão, todos temos futuro em Deus. Deus é o sentido,
a esperança e o futuro da humanidade.A Interpretação de Gênesis 1-11
Gilles
Droullet inicia a temática deste capítulo chamando a atenção para um fator
muito interessante:o que podemos observar quando comparamos os dois primeiros
capítulos do livro do Gênesis com os nove seguintes. Os dois primeiros evocam
um mundo em que tudo é harmonioso e perfeito, enquanto os nove seguintes
descrevem o mundo atual com o mal sob todas as suas formas. Gênesis l e 2 descrevem o mundo de
Deus, enquanto nosso mundo é descrito por Gênesis 3 a 11. Desse modo, o estudo fica dividido em três partes: Gn 1, sobre
a criação em seis dias; Gn 2, sobre o jardim do Éden ou paraíso; Gn 3-11,
discorrendo sobre o significado do pecado a partir dos episódios de Caim e
Abel, o Dilúvio e a torre de Babel.
Em
Gn 1, escrito por ocasião do exílio na Babilônia, o escritor Sacerdotal
apresenta a criação do mundo como uma obra divina aplicando a Deus o modelo
humano de organização do trabalho. Devemos ter em conta que este não se trata
de um texto de caráter científico, por conseguinte, todo esforço pela concordância
entre os detalhes próprios do texto e nossos dados científicos consiste numa
atitude equivocada.
À
primeira vista, temos a impressão de que se trata do nosso universo atual. O
autor quer certamente dizer que tudo isso é bom e vem de Deus. Porém, quando
olhamos mais atentamente à nossa volta, constatamos também a desordem, as
tragédias, a violência, o sofrimento e, por toda parte, a morte. Nós sabemos
que essa criação perfeita nunca foi concretizada. Assim, já que nunca houve
criação perfeita, esse texto constitui também uma narrativa de esperança, um
anúncio do mundo que Deus vai realizar no fim dos tempos.
O
texto de Gênesis l quer dizer ainda que um dia, a criação será como Deus
sempre quis: tudo será bom; quantos desejos humanos podemos encontrar nela
impressos: que não haja o mal; que o sofrimento e a morte cheguem ao fim. São
João afirmará que a Palavra pela qual Deus criou o mundo é seu próprio Filho: o
projeto de Deus para a humanidade é uma criação perfeita.
Quando
adentramos no estudo de Gn 2 vamos descobrindo que esse texto foi escrito pelo
autor Javista 400 anos antes do relato da criação em seis dias. Por meio da
simbologia do jardim do Éden ele expressa o projeto de Deus para toda a
humanidade. Deus não está reservado apenas a Israel, mas, como criador do
mundo, seu projeto diz respeito a todos os povos.
Na
perspectiva dessa narrativa, Deus não cria exclusivamente por meio de sua
palavra, mas age como um homem, como o oleiro que modela a argila, como um
jardineiro que planta um jardim, entre outras “funções” especificamente humanas.
O homem, sua criatura por excelência, cultiva e guarda esse jardim, sem
conhecer esforço nem suor. É um mundo no qual a morte não existe, graças à
presença da árvore da vida. A mulher é igual ao homem, o autor faz questão de expressar
a harmonia interior existente entre o homem e a mulher pela nudez com a qual
eles convivem com naturalidade. Finalmente, por meio da cena em que Deus
caminha no jardim para conversar com o homem e com a mulher, ele manifesta a
aliança de Deus com o homem.
Essa
narrativa é, portanto, alegórica. Ela nos revela a vontade de Deus. Chama a atenção para uma harmonia
necessária do homem: consigo mesmo; com os outros; com o mundo; e com Deus.
Este não é autor do mal. Ele está em aliança com o homem, é perpetuamente
um aliado do homem. Jesus proclamava:
"O Reino de Deus está próximo" (Mc 1,15; Mt 4,17). Ele retoma de maneira extremamente sintética a
grande esperança das duas primeiras páginas da Bíblia: a esperança da criação perfeita
e do paraíso. Além disso, palavra e ação nele se fundem. Ele mostrou, pelos seus
gestos, aquilo que Deus quer,
aquilo que será o mundo de Deus. Ele quer a igualdade entre o homem e a mulher. Dirigindo-se a
todos os que eram marginalizados, ele revelou que Deus era e será o Rei, o
protetor dos pequenos.
O
próprio Jesus viveu dessa grande esperança de Gênesis 1-2. Ele mesmo aguardou a
realização da plenitude que viria a este mundo em decorrência de sua própria
ressurreição. Na hora de sua morte, ele faz referência ao jardim do Éden. E
Deus, ao ressuscitá-lo, cumpriu nele as duas grandes profecias, a da criação
perfeita e a do paraíso: Jesus é tido, na perspectiva cristã, como o novo Adão,
o homem definitivo, no qual o projeto de Deus se realizou plenamente.
Nas narrativas de Gn 3-11 vamos imergir no imenso
enigma do mundo, a razão pela qual Deus não pôde realizar o mundo a que sonhou:
o problema do mal. “O autor” vai formando uma pintura do mal no
mundo em quatro painéis sucessivos: o homem e a mulher no paraíso, o episódio
de Caim e Abel, o dilúvio e a torre de Babel.
Em
Gênesis 3-11, temos uma visão da humanidade desde o início até o fim dos
tempos. O autor, ao mesmo tempo, descreve o mal observável no mundo,
desvenda um mal interior presente em cada pessoa humana e desmascara as forças
do mal, presentes no universo. Alguns aspectos do mal no mundo: O sofrimento e
a morte (Gn 3), os assassinatos e as guerras (Gn 4), a corrupção e a violência
(Gn 6-9), a divisão e a incompreensão (Gn 11).
Daí,
vamos percebendo que a verdade de Gênesis 3-11 é sempre atual. Basta olharmos
em torno de nós ou assistirmos aos telejornais, ou simplesmente olharmos para
dentro de nós mesmos. A grande descoberta do escritor é a existência de um mal
radical, interior, presente em
todas as pessoas. Aí ele, mais uma vez, subdivide a questão em quatro quadros
que se intercomplementam: o desejo do ser humano de se tornar “deus” por si
mesmo (o fruto do conhecimento); a presença em nós de sentimentos que fomentam
a violência, por exemplo, a inveja, o ódio (Caim mata Abel); o coração
corrompido pelas forças malignas (o dilúvio); a ganância pela plenitude sem a
graça de Deus (a torre de Babel).
O
fruto a ser comido é bem singular... É algo bem distinto de uma maçã! O autor
bíblico quer transmitir a seguinte mensagem: o homem e a mulher comem este
fruto, de modo que nós também o comemos. Por isso que os nomes Adão e Eva
são nomes simbólicos. Pois, é desde a chegada da humanidade no universo que
o pecado existe. Mas este pecado original é também um pecado atual. Qual
é esse "pecado", esse fruto da árvore do conhecimento do bem e do
mal?
Fica
claro para nós que o desejo de Deus na Bíblia é uma vida plena para o homem. Se
nós sonhamos em ser como deuses, é porque Deus, nosso Criador, semeou em nós
essa busca por uma felicidade infinita: “o homem é fundamentalmente desejo de
ser Deus” (Sartre). Não há nada de mal nesta busca pelo infinito inscrita em
nós. Contudo, a narrativa bíblica salienta que o homem e a mulher querem chegar
à plenitude por si mesmos. Tal é o fruto que o homem e a mulher comem:
o desejo de autossuficiência. Cada
um gostaria que Deus não existisse para poder chegar à plenitude por si mesmo. A
tentação permanente do ser humano é a de querer ser autossuficiente e se fecha
a Deus. É esse fechamento que constitui o pecado.
Essa
rejeição começou com a chegada da humanidade ao mundo, ou seja, com a chegada
da consciência ao universo material. Somente o ser humano é capaz desse pecado,
pois ele é o único ser capaz de operar um retorno a si mesmo, de se situar na
existência e de se situar diante de Deus. Ele é o único sobre a Terra a
participar do mundo material e do mundo espiritual. Ele é, assim, a consciência
da matéria, o lugar no qual ela se torna pessoal e livre.
O
que Gênesis 3 afirma é que desde que a humanidade emergiu no mundo, ela
se considerou rica o suficiente para subsistir por si mesma. O momento da
tentação coincide com a aparição da consciência e da liberdade no mundo. O
exercício da liberdade do homem se orienta em direção a uma recusa. O fruto da
árvore do conhecimento do bem e do mal, ser deuses por nós mesmos, é sempre
sedutor de se comer.
Deus,
tal como é apresentado no Gênesis, quer que nos tornemos como ele, o que
se confirma ainda mais na perspectiva cristã: “Deus se tornou homem para que o
homem se tornasse Deus”(Varillon). Por isso que o natural é o nosso desejo de
nos mantermos centrados sobre nós mesmos. Consequentemente, a fé e a conversão
exigem um arrebatamento de nós mesmos. Converter-se é transformar-se completamente, mudar o foco do olhar,
descentralizar-se.
Daí
que se torna imprescindível superar dois sentimentos que tomam conta da nossa
existência se não formos vigilantes em nossas ações: a inveja e o ódio.
Exatamente por deixá-los florescer que desde o início da história humana
existem assassinatos e guerras no mundo. Caim que mata Abel: é a representação
daquilo que se passa hoje em dia. Os homens continuam matando seus semelhantes,
desrespeitando a vida, que é dom de Deus.
A
narrativa do dilúvio revela a maldade que estava espalhada por toda parte. O grande problema é que esse mal é interior, o
coração do homem está corrompido. Por isso, é difícil de se diagnosticar a
situação. Muitas vezes não percebemos “a bomba” que está prestes a explodir ou
fechamos os olhos para determinada situação. Poderíamos dizer que estamos
"nos dias que precedem o dilúvio": a corrupção e a violência estão
por toda a terra.
Com
a figura de Noé, apresentado como fiel a Deus, podemos novamente reconhecer a
grande abertura de espírito: Deus permanece em aliança com o homem e com toda a
criação. Noé, "o homem justo, íntegro, que andava com Deus"(Gn 6,9) é
também uma prefiguração de Cristo, o qual, juntamente com os seus, será salvo
do mundo atual para ingressar em uma nova criação. A arca de Noé é uma imagem
da barca que é a Igreja, sacudida pelas águas que simbolizam as forças
malignas. Contudo, é destacado também o símbolo do arco-íris ao qual, tanto no
início como no fim da Bíblia, significa que, um dia, o dilúvio aconteceu,
ocasionando, assim, o fim do mundo atual, mas que uma nova ordem do mundo será inaugurada,
e a paz restabelecida. Essa deve ser a nossa razão de lutar e, consequentemente,
viver o Reino e a esperança de Sua plenitude na vida eterna.
Relatando sobre a torre de Babel, o autor utiliza a
expressão penetrar
os céus, quer dizer, o mesmo que querer ser como deuses. É querer chegar à plenitude
sem Deus. O marxismo foi um exemplo disso, mascarado numa promessa de estabelecimento
da justiça, mas, na verdade, prometia à humanidade chegar a uma realização
plena, sem Deus.
Atualmente,
o projeto de uma sociedade unificada, conhecido como o fenômeno da
"globalização", se apoia sobre o pretexto da aproximação dos povos,
favorecida pelo notável desenvolvimento dos meios de comunicação. Contudo, uma
vez mais, aquilo que é bom em si (ou seja, um projeto de unidade) é utilizado
para a escravização da humanidade. Dominados pelo dinheiro, aqueles que têm o
poder pouco se importam com o aspecto humanitário. Apresentando-se com a
máscara da fraternidade, da igualdade, da unidade, uma elite anônima age às
escondidas, buscando submeter as pessoas, dominá-las. Visam simplesmente à
uniformização por meio da abolição de culturas particulares. O desígnio de Deus
é exatamente outro: unir uma grande multidão, mas cada um guarda sua identidade
(Ap 7,9). Sabemos da riqueza que existe na essência de cada cultura particular,
levando em conta a diversidade de dons e carismas.
O
projeto da torre de Babel continua em andamento, inspirado por um espírito de
divisão que se apresenta como espírito de unificação. Nossa sociedade quer se
realizar sem Deus. Entretanto, sem Deus ninguém se compreende (Gn 11,7-9). Pelo
Espírito Santo, que é o Espírito de Amor, que a humanidade se reencontra e se
respeita em suas diferenças.
Por
trás da imagem da serpente se esconde um ser pessoal, anterior ao homem. A Bíblia, de Génesis 3 a Apocalipse 20,
indica que a rejeição a Deus é de responsabilidade do homem, produz-se
sob a influência de uma força maligna que compromete a realização do
projeto de Deus. Por isso não podemos estudar a Bíblia, com seriedade, nos
silenciando sobre a presença de Satanás. Certamente esse ser não foi criado
como uma criatura maligna, mas é certo que ele rejeitou Deus e que sua revolta
repercute no mundo humano. Sua mentira mais
perniciosa é a de apresentar Deus como aquele que diminui o homem, quando na
verdade Deus quer completar o homem. O livro da Sabedoria nos chama a atenção
para o fato de que o diabo tem inveja do homem e da mulher, porque estes
ainda podem chegar à plenitude pessoal por meio de uma relação com Deus.
Um
combate decisivo se estabelece desde o início da vida pública de Jesus, na qual
Satanás está presente como o tentador. Aliás, o fato de Jesus ter sido
realmente tentado é da mais alta importância; caso contrário, ele não teria
realmente participado de nossa condição humana e não poderia ser o Salvador. De
acordo com os evangelhos, Jesus foi tentado de todas as maneiras por Satanás em
sua vida terrena, frequentemente por intermédio de seus próprios discípulos,
por exemplo, Pedro, que queria um Messias conquistador (Mc 8,33). É tentado por
todos aqueles que querem que ele imponha a fé por meio de milagres. Lucas
revela que ele “crescia em sabedoria” (Lc 2, 40.52) para mostrar que ele
meditou as Escrituras e viveu uma vida como um verdadeiro “campo de batalha”.
A
Bíblia, ao mesmo tempo em que nos revela Deus com clareza, conscientiza-nos a
respeito das forças do mal. Um Deus que convida o homem a que se volte para
Ele, em vez de se fechar sobre si mesmo. Jesus nos revela, ao expulsar os
demônios, que Deus permanece invencível e que um dia sua criação estará
definitivamente liberta das forças do mal. O demônio é absolutamente contrário
do que é Deus, pois o desejo manifestado por ele é o de querer passar por cima
da vontade das pessoas, de fazer com elas o que bem entender, de as possuir.
Deus, em contrapartida, nunca força a liberdade individual.
A
Nova Era elimina claramente o Deus pessoal, substituindo-o pelas energias
cósmicas ou pelo "divino em nós". O contexto pós-moderno ao perder a
referência ou a base de sustentação da reflexão, do agir ético, etc., perdeu
também o sentido para o qual deve caminhar nossa existência, que é Deus
encarnado em Jesus Cristo. O que predomina hoje, relativismo, egoísmo que levam
a mentiras e homicídios são, portanto, sinais de que o homem está possuído
pelas forças do mal.
Jesus,
no momento de sua morte, mesmo com todo aquele arsenal do mal que estava
montado – traição, prisão, abandono dos discípulos, negação de Pedro, mentira,
ódio, zombaria, rancor, martírio – ele não penetrou em tais formas do mal. Ao
contrário, permaneceu fiel, livre, verdadeiro, sem ressentimento, nem desejo de
vingança ou de dominação.
Portanto,
refletindo sobre esses primeiro onze capítulos do livro do Gênesis, vamos
notando que são “narrativas míticas” cujo objetivo essencial é o de remontar
para o antes da criação, com vistas a relatar o projeto de Deus. Os autores
compreenderam que "este mundo da existência humana não é nem pode ser
aquele que Deus podia criar". Eles afirmam que nós fomos projetados para
ser à sua imagem. De fato, segundo a Bíblia, Deus não nos criou pecadores. Percebemos
isso transportando o Deus do Êxodo para o começo do mundo, ao modo do escritor Javista,
segundo o qual viu o Criador como aquele que sabia que teria de salvar a
criatura. Deus previu que seria rejeitado. Nesse sentido, para os autores, Deus viu com antecedência toda a
história do pecado da humanidade. E então, acrescentam eles, com antecedência
ele nos respeitou. O homem e a mulher é que permitem que as
forças do mal os atinjam. Sendo assim, "segue-se que o mal só é atribuível
a Deus na medida em que ele respeita a liberdade humana."
A
partir do instante em que a relação com Deus é rompida, o homem e a mulher veem
por si mesmos que estão nus, o que é diferente de constatar a diferença
de sexo um do outro! Sem Deus, encontramo-nos verdadeiramente nus, num enorme
vazio. Além do mais, o homem e a mulher espontaneamente se escondem, o
que significa que são julgados por si mesmos. Deus, por sua vez, procura-os.
De sua parte, a aliança nunca é rompida. Ele continua a amar. E a única
coisa que ele faz é constatar o que o homem e a mulher decidiram. Deus não fixa
o destino dos seres humanos. Cada um fixa seu próprio destino. Jean-Paul
Sartre, na obra O existencialismo
é um humanismo já afirmara: "O homem será aquilo que ele fizer de
si".
Aqui
reside um dado essencial do amor. Quando se ama, deve-se reconhecer
diante de si uma outra liberdade. O inferno não é uma criação de Deus, mas uma
possibilidade humana. E se afirmamos que o inferno não existe, queremos dizer
que não somos livres. Dessa forma, através dos onze primeiros capítulos do
Gênesis, uma grande esperança se desenha, apesar do mal existente. Suas páginas
nos apresentam um Deus benevolente. Ele vê toda a humanidade fechada a ele e,
mesmo assim, anuncia uma vitória da humanidade sobre as forças do mal. Ele vê
toda a maldade do homem sobre a terra e ainda se mantém em aliança com ele e
com toda a criação, é uma das mais belas traduções do amor pleno: apesar do mal
que os homens podem fazer, eles não podem impedir Deus de realizar o mundo tal
como ele desejava, perfeito.
Outro
aspecto interessante é o fato de que os autores fazem a idade dos homens diminuir
progressivamente. Isso apresenta um significado teológico profundo: quanto mais
o mal se propaga na humanidade, menos o homem vive. A ressurreição de Jesus é
a garantia de Deus sobre as profecias do Gênesis. Deus é fiel, e esse lado
bom do mundo nos conduz a espreitar o que será o mundo futuro.
Referência
bibliográfica
DROULLET, Gilles. Compreender o AT. São Paulo: Paulus,
2008.sábado, 6 de setembro de 2014
quarta-feira, 11 de junho de 2014
O CONTEÚDO DA BÍBLIA
A Bíblia contém
73 escritos que estão agrupados em dois "Testamentos", o Antigo e o Novo.
Destes, 27 escritos pertencem ao NT, que é literatura nitidamente cristã. O
Antigo Testamento é literatura judaica. O termo "testamento" é uma
tradução equívoca do original hebraico berit, que significa
"aliança", "pacto".
A ordem em que
se encontram os escritos da Bíblia não é a ordem em que foram compostos. Gênesis
não foi o primeiro a ser escrito, nem o Apocalipse foi o último. Encontram-se
ordenados segundo temas e gêneros
literários - todos os históricos juntos, os profetas juntos, etc. Exceto o
bloco que vai de Gênesis a Reis, a ordem dos escritos do Antigo Testamento pode
variar de uma Bíblia para outra. Isto se deve ao fato de que a sequencia é
diferente na versão hebraica e na grega (e latina). "Gênesis" (a
primeira palavra deste livro, em grego, significa "origem, início"; (em
hebraico é bereshit) não era o título do primeiro escrito que
encontramos na Bíblia, nem "Evangelho segundo Mateus" era o título do
primeiro Evangelho que encontramos no Novo Testamento. Original era somente o
texto. Os títulos foram colocados mais tarde por razões práticas, para
distinguir um escrito de outro.
Nenhum dos
escritos da Bíblia estava originalmente dividido em capítulos e versículos. Os
subtítulos que encontramos (e que variam de uma Bíblia a outra) tampouco são
originais. Ocasionalmente, são equívocos: a parábola
conhecida
como "do filho pródigo" (Lc 15,11ss) não se centra no filho, mas no
pai misericordioso, portanto, deveria ser intitulada "parábola do pai
misericordioso"- além do que a parábola fala também do outro filho que
ficou em casa. Vista do lado de Deus, a
Bíblia apresenta a história das ações de Deus na história dos homens, desde as
origens até sua expressão definitiva em Jesus Cristo, e projetando-se para o
futuro. Vista do lado dos homens, a Bíblia inclui experiências pessoais de muitos
indivíduos, seu diálogo com Deus, suas atitudes de obediência ou de
infidelidade, suas reflexões e sua sabedoria. Em outras palavras, levando em
conta os diversos gêneros literários que encontramos na Bíblia e o fato de que
ela abarca mais de um milênio de história, vem a ser a história singular,
sempre atual (pois se fazem as mesmas perguntas, e se apresentam as mesmas
atitudes humanas) do diálogo entre Deus e os homens, dos chamados de Deus e das
sucessivas respostas dos homens. Os diversos personagens encarnam atitudes
humanas que frequentemente são representativas e expoentes das pessoas de hoje.
O
Cânon bíblico
A palavra
"cânon" vem do grego; designava uma vara para medir. Por extensão,
significava também regra ou norma (cf. 2Cor10,13.15.16; Gl 6,16). Este termo
era usado para referir-se aos critérios e às regras literárias ou artísticas,
por exemplo. O cristianismo adotou este termo para referir-se à coleção de escritos que
considerava inspirados por Deus e que, como conjunto, constituíam a regra ou norma para a fé e para a
vida do crente. O termo "cânon" foi usado, então, para designar a coleção de escritos
"inspirados" e para sublinhar seu caráter normativo, quer dizer, de
regra ou de norma de vida.
Diferença
entre a Bíblia Católica e a protestante
A diferença entre a Bíblia católica e a protestante gira em
torno da lista de livros judaicos pelos
quais se regem. Os católicos regem-se pela lista da LXX, que é a mesma que a Vulgata, portanto, incluem como canônicos os sete escritos chamados deuterocanônicos. Este são Tobias, Judite, Sirácida
(Eclesiástico), Sabedoria, Baruc e 1 e 2 Macabeus, além dos acréscimos em grego a Ester e a Daniel. Os protestantes regem-se pela lista da Bíblia
hebraica, que não inclui os deuterocanônicos. Esta é a diferença substancial entre a Bíblia católica e a
protestante. Além disso, tem a questão da tradução, que eles têm uma forma
“diferente”, uso de determinadas palavras em algum contexto específico. Também
com relação a notas de rodapé, na tradução deles não constam comentários
críticos.
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